quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O que os clássicos da política podem nos dizer sobre a crise brasileira

Por Luiz Fernando Miranda*


Desde 2015 quando vieram a tona as contas do governo de Dilma Rousseff os brasileiros vêm sofrendo com uma poderosa crise econômica e política que tem se revelado em blocos de fatos que chocam a população e causam indignação e repúdio dos cidadãos em relação à política. O fenômeno da descrença na política é crescente e mundial. Ele diz respeito exatamente à desesperança dos cidadãos com escândalos de corrupção e até mesmo com o regime democrático. Amartya Sen, economista indiano e Prêmio Nobel de Economia de 1998 justifica tal descrença dizendo que quanto mais o tempo passa, mais frágeis ficam os argumentos de que a democracia nos trará justiça social e igualdade para todos. Já o teórico político italiano Norberto Bobbio nos fala que a democracia deixa, por esse motivo, promessas não cumpridas que frustram as pessoas comuns.

O objetivo deste artigo é mostrar dois pontos. Primeiro gostaria de argumentar que seguindo a linha de argumentação de determinados pensadores políticos poderemos entender, com mais facilidade, o atual comportamento dos políticos e o próprio funcionamento da política em si. O segundo ponto trata de mostrar o que é necessário fazer para se proteger da corrupção política.

De início faço uma afirmação para provocar o leitor: política não tem relação com moral! Encontrar políticos tentando se beneficiar dos seus cargos para ganhos pessoais ou de campanha é, portanto, algo esperado. A afirmação pode causar espanto num momento em que nunca se falou tanto em ética, mas já na renascença italiana Nicolau Maquiavel (1469-1527), com o objetivo de conseguir a paz para o seu reino e em busca da unificação da Itália, escreve o clássico livro ‘O Príncipe’. Nele, Maquiavel pensando no mundo como ele o enxergava cotidianamente, escreve uma espécie de guia dedicado a Lourenço de Médici mostrando-lhe como deveria agir para obter tal façanha. Para que isto ocorresse o Príncipe não deveria se furtar do uso de uma série de artifícios amorais para obter seu objetivo tais como preferir o medo dos súditos ao seu amor e se utilizar da ‘virtu’ e da ‘fortuna’ para galgar suas metas. É deste livro e baseado nestas justificativas que Maquiavel vai escrever que os fins justificam os meios. Aqui não cabe mais a coragem aristotélica. O que vai trazer benefícios ao príncipe seria o que Aristóteles veria como uma extrapolação da moderação, ou seja, a astúcia e atitudes ardis. O que se encontra como sugestão não me parece muito diferente das manobras do ex-deputado Eduardo Cunha para não sair da presidência da Câmara: artifícios de manipulação, chantagem e ameaças eram recomendados para um bom fim, no caso italiano.

Não menos polêmico e um século depois Thomas Hobbes (1588-1679), em meio às guerras de disputa do trono inglês, vai nos dizer, ao contrário de Rousseau, que o que se chamava de natureza humana era algo bastante negativo e que, portanto, o ‘homem é lobo do homem’, ou seja, o homem explora o próprio homem. Hobbes deduziu que a disputa entre os homens levada ao extremo geraria uma guerra de todos contra todos e faria com que o homem, por medo de uma morte violenta, criasse um pacto social onde se concede ao Soberano o monopólio legítimo da força. Assim se obteria a paz e a segurança para se viver.

Um século à frente, os fundadores da república americana, James Madison (1751-1836), Alexander Hamilton (1757-1804) e John Jay (1745-1829) tiveram a preocupação de criar mecanismos de controle institucional que suportassem a ganância do homem. Dessa maneira, sofisticando a teoria dos três poderes de Montesquieu (1689-1755) os Founding Fathers criaram os mecanismos de freios e contrapesos que são fiscalizações mútuas entre o Executivo, Legislativo e Judiciário de forma que um poder não se sobreponha ao outro. A necessidade de tal artifício institucional fica claro numa famosa frase de Madison: “Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”.

No século XIX, os teóricos chamados de elitistas, Vilfredo Pareto (1848-1923), Gaetano Mosca (1858-1941) e Robert Michels (1877-1936) vão nos falar que o poder, na prática, não emana do povo, mas sim da disputa e circulação de elites políticas que ou se apoderam do governo ou ganham eleições. No mesmo século dois pensadores com visões de mundo bastante diferentes possuíam um ponto que podemos contar como comum: a desconfiança política com as ações dos homens. Karl Marx (1818-1883) vai nos dizer que história da humanidade tinha sido, até então, a exploração de classes dominantes sobre classes dominadas e Max Weber (1864-1920) iria afirmar, durante a experiência da fracassada República de Weimar, que o político profissional tem a vocação do demagogo.

Na segunda metade do século XX, fundindo teoria econômica com teoria política, estudiosos da chamada Escola da Escolha Racional, entre eles Mancur Olson, Anthony Downs e William Riker vão nos dizer que os políticos são auto-centrados, maximizadores de utilidade e se utilizam de lógica fiduciária para sobreviver politicamente. Mais atualmente, autores como Oliver Williamson, Daniel Gingerich, Arthur Luppia e Mathew McCubbins vão nos dizer que os políticos também buscam reeleição, são propensos a comportamento oportunista e usam sua maior capacidade de obter informação em relação aos eleitores para extrair vantagens em relação a estes.

Do século XV ao XXI podemos ver, portanto, autores diversos mas profundamente desconfiados com as ações dos políticos, preocupados em descrever empírica ou teoricamente modelos de explicação desse comportamento, e, nos dias atuais, voltados a melhoria do desenho institucional de modo que se evite o comportamento oportunista ou rent-seeking. Manifestações que cobram ética na política são, portanto, apenas manifestações ingênuas e pouco informadas da Realpolitik uma vez que os políticos são propensos a este comportamento oportunista e que usam da defasagem de conhecimento para enganar o eleitor.

Nossa tradição sebatianista[1] parece colocar o juiz Sérgio Moro como o ‘Grande Legislador’ de Rousseau. Alguém que aparece de algures, resolve o problema do pacto social e sai de cena. Esperança também ingênua. A atual crise política brasileira fez atores políticos adormecidos, como boa parte da população, tomarem posição. E a tomam, às vezes, de maneira que parte da elite intelectual não gostaria de ver, pois cobra soluções de maneira conservadora.

Todo esse caminho teórico que percorremos não teve o intuito de gerar desesperança ao leitor, pelo contrário, a ideia é mostrar que o caminho não é a consciência do voto ou a cobrança de ética na política. O caminho para construção de uma democracia sustentável está muito mais ligado à qualidade das regras institucionais e em mecanismos coletivos de cobrança para além do voto. A este respeito o cientista político argentino Guillermo O’Donnell mostrou num estudo como os mecanismos de accountability horizontal (entre os três poderes) se faziam necessários e fortes para compensar o problema ontológico da accountability horizontal (entre os representantes e os representados). O que soa mais esdrúxulo é que estamos passando por esta crise justamente porque as instituições estão funcionando! Em outras palavras, elas permitem, quando não fomentam, a predação pública que faz viger no país uma cleptocracia na prática. Novas regras de financiamento de campanha e de controle da fragmentação partidária parecem um movimento claro no sentido da melhoria da solidez institucional. Falta, ao país, grupos de pressão vindos da sociedade e que se organizem de forma mais eficiente e republicana para cobrar mudanças e ajustes. Falta, também, à população, conhecimento sobre nossas instituições. Tudo isto parece se dever a uma constituição que mistura características presidencialistas com parlamentaristas e pouco adequada à realidade brasileira, além de  nosso pouco tempo de amadurecimento democrático.

A saída para a crise política e para a corrupção reside, portanto, em mudanças institucionais que melhorem sua eficácia e as blindem de comportamentos oportunistas. A Operação Lava Jato que atingiu em cheio o governo de Dilma Rousseff e que agora atinge o governo Temer não me parece ser a Caixa de Pandora como quer a esquerda. Me parece mais um dedo na ferida. Uma vez que se tire o dedo, a ferida ainda estará lá. Trocando em miúdos, precisamos mudar as regras e não os políticos. Somente a melhoria institucional pode evitar com que oportunistas tenham chance de agir, e, assim, melhorarmos a qualidade de nossa representação.

* Doutor em Ciência Política (UFF). Pós-doutorando (PUC-Rio)

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[1] Crença mística, propagada em Portugal logo após o desaparecimento de D. Sebastião 1554-1578, segundo a qual este rei, como um novo messias, retornaria para levar o país a outros apogeus de glórias e conquistas.

Imagem: Reprodução http://jornaldapuc.vrc.puc-rio.br/

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Com quantos partidos se faz uma eleição?

Por Bruno Souza da Silva* e Vitor Vasquez**

(Este texto trata-se da versão expandida do artigo originalmente publicado no blog Legis-Ativo do Jornal Estadão com o mesmo título no dia 06 de setembro de 2016)

Não é incomum ouvirmos falar que os partidos são todos “farinha do mesmo saco”. Eles sempre aparecem em pesquisas de opinião pública na parte debaixo da lista de instituições dignas de confiança pelos cidadãos. Ou seja, são vistos com maus olhos. Continuamente adentramos em debates sobre a reforma política e, por vezes, as críticas e soluções apontadas estão relacionadas aos partidos. No entanto, a despeito de como olhamos para eles, uma questão é indubitável: são as únicas organizações capazes de transformar votos em cadeiras. Em outros termos, partidos continuam sendo os detentores do monopólio da representação política dentro da estrutura de governo e no Legislativo. Mas por que nos lembrarmos disto é importante? 

Faltando menos de um mês para acontecer o primeiro turno das eleições municipais de 2016, o qual ocorrerá no dia 2 de outubro, nos parecem pertinentes algumas reflexões sobre as disputas eleitorais. Principalmente porque o município, por ser a unidade eleitoral mais elementar do país, apresenta-se como local propício à formação de quadros políticos, ainda mais quando consideramos as eleições para as câmaras municipais, porta de entrada para vários políticos profissionais. Além de se tratar de um pleito no qual escolheremos os membros que compõe a maior classe política brasileira – são mais de 57 mil vereadores que serão eleitos neste ano – a disputa apresenta custos mais baixos para os partidos oferecerem seus candidatos aos eleitores. 

É também caracterizada por trazer às campanhas pautas e temas políticos vivenciados no dia a dia pelos cidadãos, uma vez que a abrangência da competição é local. Sem contar que a proximidade entre eleitores e candidatos é muito mais intensa, o que nos permite conhecermos as figuras políticas tête-à-tête, tornando as eleições mais íntimas do eleitorado. Tais especificidades locais apresentam desafios ainda maiores para os partidos darem conta de lançarem candidatos neste amplo e complexo território no qual ocorrem as eleições.  

Levando isto em conta, partimos dos seguintes questionamentos: em que medida os partidos apresentam seus candidatos em um universo composto por mais de 5.500 municípios? Eles possuem a mesma capilaridade? E o que a oferta de candidaturas para o Legislativo municipal pode nos indicar sobre o nosso sistema político?

O primeiro dado a respeito das disputas eleitorais que nos chama atenção é o da expansão dos partidos no Brasil ao longo das eleições municipais. Segundo informações do TSE, de 1996 a 2016 o número de partidos que apresenta candidatos a vereador por município cresceu constantemente no país. Por exemplo, em 1996, os 25% dos municípios brasileiros que tinham menos partidos nas disputas para vereador contavam com apenas 5 legendas ou menos. Vinte anos depois destas eleições, agora em 2016, os 25% dos municípios brasileiros que têm menos partidos nestas disputas apresentam até 13 partidos. A média de partidos por disputa saiu de 7 em 1996 para quase 14 em 2016. As informações estão detalhadas na tabela a seguir.

Em resumo, ao longo das eleições municipais, cada vez mais partidos passaram a oferecer candidatos para o cargo de vereador. Desta forma, os 9 mais tradicionais partidos brasileiros, a saber, PMDB, DEM (antigo PFL), PSDB, PP (antigo PPB), PDT, PTB, PT, PR (antigo PL) e PSB, passaram, ao longo do tempo, a serem sistematicamente acompanhados por outros partidos nestas disputas. Inclusive siglas mais jovens, como o SD, PROS e PEN, destacam-se pela quantidade de municípios nos quais oferecem candidatos e, na mesma linha, segue o PSD, que compete pela segunda vez em eleições municipais. O infográfico a seguir traz a evolução da participação partidária em termos de porcentagem de municípios nos quais cada partido ofertou ao menos um candidato a vereador nas eleições de 1996 a 2012. Apresentamos também os dados de 2016 para efeitos comparativos.


É possível observarmos que, com o passar dos anos, os partidos ampliaram (e muito) a sua participação nas eleições municipais. A inserção partidária nos municípios abrange inclusive as siglas menores e mais novas, tornando a disputa eleitoral aparentemente mais intensa. No entanto, a grande questão é a seguinte: em que medida isso é bom ou ruim? Depende do ponto de vista. Por um lado, no que toca à competição eleitoral, é positivo termos mais contendores disputando eleições. Em princípio é equivalente a dizermos que há mais possibilidades de escolha para o eleitor dentro do jogo. Por outro lado, sabemos que a conseqüência eleitoral do aumento na quantidade de partidos representados dentro do sistema político é o aumento da fragmentação partidária, em relação à qual muito da atual crise política que enfrentamos tem sido tributada.    

Em larga medida a intensificação da capilaridade dos partidos parece coerente com o aumento frequente da fragmentação partidária que temos acompanhado no sistema político brasileiro como um todo. A questão que nos incomoda diz respeito ao impacto que este aumento de participação dos partidos, para além dos mais tradicionais nos Poderes Legislativos brasileiro, pode trazer para a democracia brasileira. Se, por um lado, há os que argumentam que isto causa imprevisibilidade ao sistema e, por isso, o enfraquece em termos de estabilidade; por outro isto pode representar um aumento de representatividade na política brasileira, que se expressa até mesmo no seu ambiente mais elementar de disputa, ou seja, nas câmaras municipais. 

Fato é que o número de partidos presentes nos municípios tem aumentado eleição a eleição e isso certamente afeta a competição partidária no Brasil. Talvez a resposta a respeito do que a maior capilaridade dos partidos representa para o sistema político esteja a um meio termo entre estabilidade e mudança. Pode admitir a ampla representatividade, característica de um sistema pluripartidário, mas deve se preocupar, pelo menos minimamente, com a consolidação dos principais competidores. 

Outra informação importante do sistema político brasileiro que as eleições para vereador sugerem diz respeito à flutuação de força dos partidos. Exemplos disto podem ser vistos por meio do dado de apresentação de candidaturas, como os do DEM e do PT. O primeiro, até a disputa municipal de 2004, oferecia candidatos para vereador em mais de 80% das cidades brasileiras. Porém, a partir de 2008, o partido teve seguidos decréscimos neste quesito, passando a oferecer candidatos em 65% dos municípios em 2016. Este recuo começou no mesmo período em que o DEM, então PFL, rompeu com o governo FHC (PSDB) para tentar candidatura própria à presidente, já no final do mandato. Neste processo, o partido perdeu prestígio e nem conseguiu apresentar sua candidatura. Além disso, em 2007 morreu Antônio Carlos Magalhães, principal liderança do PFL. No mesmo ano o partido decidiu trocar de nome, passando a se chamar Democratas (DEM).

Já o PT teve um período de ascensão que se destaca por ser concomitante à sua primeira chegada à presidência, em 2002. O partido saltou de uma oferta de candidatos em 61% dos municípios em 2000, para 91% em 2004. Em 2008 e 2012 manteve-se na casa de 90%. Porém, com o desgaste do partido no segundo mandato Dilma, que culminou no impeachment da presidenta, o partido passou a oferecer candidato para vereador em somente 75% dos municípios em 2016.

Tais informações nos levam a um questionamento a respeito do que, segundo o senso comum, ocorreria na política local: o seu funcionamento à parte do sistema político nacional. A julgar tanto do ponto de vista da fragmentação partidária, quanto do ponto de vista da força dos partidos, os municípios parecem ser coerentes com o que ocorre no sistema político como um todo. Além do mais, o âmbito local é importante no processo de estruturação das bases políticas nacionais, o que torna as eleições municipais alvo de grande interesse das siglas, a julgar pela grande expansão na oferta de candidatos e presença dos partidos nos municípios. Mas talvez esta reflexão seja irrelevante, afinal de contas partidos não importam, certo?

* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP)
** Doutorando em Ciência Política (UNICAMP)

Imagem: Reprodução http://www.updateordie.com/

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Assassinatos em massa, violência e controle de armas: algumas evidências internacionais

Por Antonio Henrique Lucena Silva*
Bruna Valença Bacelar**
Juliano Cesar Shishido Goes***

(Publicado originalmente em 'Vox Magister', em 22 de Agosto)

No último dia 12 de junho, os Estados Unidos sofreram um outro massacre realizado com armas de fogo automáticas, desta vez em uma boate frequentada por homossexuais, em Orlando. Este foi o maior assassinato do gênero na história do país, deixando 50 mortos, incluindo o responsável pelos tiros que foi alvejado pela polícia, e 53 feridos. O executor, Omar Mateen, de origem afegã, pouco antes do ato entrou em contato com a polícia e jurou fidelidade ao Estado Islâmico, o grupo assumiu a responsabilidade do ataque algumas horas depois. Apesar da declaração do pai e da esposa do atirador quanto a sua pouca religiosidade, o caso não foi considerado pela polícia norte-americana como um ato de terrorismo jihadista. Há também relatos de que Omar frequentava a boate que atacou, testemunhas alegam tê-lo visto diversas vezes no local, outra disse ter recebido mensagens dele em um aplicativo destinado ao público gay.

Independente das motivações, o ocorrido na boate Pulse, infelizmente, não é uma novidade para os Estados Unidos, já que ataques semelhantes são bastante recorrentes. Só em 2016, o site contabilizou 300 tiroteios em que 4 pessoas ou mais foram mortas ou feridas, inclusive o atirador, tendo ele sido ferido ou morto pela polícia ou cometido suicídio. Apenas este ano, já são 1.121 feridos e 401 mortos neste tipo de incidente, sem contar outros episódios perpetrados por armas de fogo.

Em se tratando deste assunto, outros ataques surgem à mente com facilidade devido ao choque que causaram em todo o mundo. O maior até então havia sido em 2007, na universidade Virginia Tech, em que 33 pessoas morreram (inclusive o autor do ataque) e 15 ficaram feridas; o ato foi executado por um aluno da universidade e teve a duração de 2 horas, iniciando nos dormitórios, onde duas pessoas foram mortas, e continuando em uma sala de aula. Outro ataque sempre lembrado foi o que aconteceu em 1999 e ficou conhecido como Massacre de Columbine, no qual dois adolescentes invadiram o Instituto Columbine com bombas caseiras e armas de fogo – como as bombas falharam, iniciaram um tiroteio que durou quase uma hora e matou 13 pessoas; o caso é icônico por ter sido televisionado ao vivo e, posteriormente, ter inspirado um filme ganhador do Oscar em 2003. Mais recentemente, um afroamericano, Micah Johnson, usou um fuzil para atacar 12 policiais e 2 civis, deixando 5 agentes mortos.

Os eventos elencados, bem como outros não descritos aqui, em sua época reacenderam as discussões a respeito do porte de armas, e, com o massacre de Orlando, o assunto se tornou tema mais uma vez. São muitos os questionamentos sobre as vantagens e desvantagens do porte de armas por civis e da sua comercialização. Portar armas aumenta a violência, dando margem para que outros massacres aconteçam? Menos armas significa mais segurança? Seria o caso apenas de enrijecer as vendas e aumentar a fiscalização para evitar que adolescentes, como os de Columbine, ou pessoas como Omar Mateen, investigado duas vezes pelo FBI por suspeitas de terrorismo em 2013 e 2014, tenham fácil acesso às armas? Buscaremos responder estas e outras perguntas elencando as políticas de desarmamento e de porte de armas em alguns países, além de analisar as características que tornam os Estados Unidos um caso específico, ou seja, um outlier .

Os americanos possuem um grande número de armas em circulação. As armas de fogo são uma das principais causas de mortes nos EUA. Comparada com outras formas de morte em países avançados, os dados mostram que os estadunidenses podem ser considerados um extreme outlier em relação a mortes violentas.

Gráfico 1:





A morte por armas de fogo nos EUA é comparável às mortes causadas por acidentes de carro, enquanto na França é o equivalente a morrer por hipotermia, acidente de avião na China, cair de uma escada na Nova Zelândia ou ser atingido por um raio no Japão (este país asiático proíbe totalmente o porte de armas). É importante frisar que os americanos não detêm o recorde de violência por armas de fogo no mundo. Na América Central, África e Oriente Médio, até mesmo no vizinho México, os números são mais altos, porém eles não estão no mesmo nível educacional, de expectativa de vida ou de PIB. Para os países da amostra do estudo de Quealy & Sanger-Katz, que levam em consideração as democracias desenvolvidas, os Estados Unidos são um caso específico.

Como mostramos no início, os americanos usam, com certa regularidade, armas de fogo de alta capacidade que levam a assassinatos em massa. Houve algumas tentativas de reformas por buscar frear ou dar limitações para que as pessoas comprem armas e empreendam esse tipo de ação, que as abordaremos ao longo do texto. Os oponentes do controle de armas argumentam que a difusão do uso de armas de fogo atua como uma medida de dissuasão de crimes, beneficiando a sociedade. Por outro lado, os que advogam por uma maior restrição discordam desta visão. Estes acreditam que a alta disponibilidade de armas é um estímulo ao crime, superando os efeitos dissuasivos que a posse de armas deveria proporcionar. Os cientistas sociais muitas vezes divergem sobre os estudos relacionados ao controle de armas.

Frederic Lemieux analisou os tiroteios em massa ocorridos em três períodos diferentes em relação à lei americana que restringiu o acesso a armas de assalto semiautomáticas e a carregadores considerados de grande capacidade (Federal Assault Weapons Ban – AWB): foram contabilizados 19 tiroteios em massa nos dez anos anteriores a sua vigência (1983 a 1994); nos dez anos de vigência do banimento (1995 a 2004) ocorreram 16 tiroteios em massa; e aconteceram 27 eventos desse tipo nos dez anos após a lei ter expirado (2005 a 2013). Mesmo salientando que os números são pequenos demais para se proceder a uma análise estatística confiável, o autor observa que há uma acentuada diferença entre os eventos ocorridos durante a vigência da referida lei e o período posterior ao fim do banimento.

Para Spitzer, um dos maiores problemas para que leis mais rígidas sejam aprovadas nos EUA é o lobby que as associações, como a NRA (National Rifle Association), fazem no congresso americano. O autor demonstra que a alta motivação do grupo e sua habilidade organizacional contribuem para a sua efetividade em barrar legislações e influenciar políticos (idem). Antes do referendo do desarmamento no Brasil, estrategistas políticos da NRA vieram ao país para assessorar grupos que eram contrários às restrições de uso de armas. A campanha do “NÃO” usou um playbook da associação do rifle americana que recomendava ressaltar a perda de direitos, caso o referendo fosse aprovado. A estratégia teve sucesso e 63,94% dos votantes optaram pelo “não” .

No caso do Brasil, o estudo realizado por Daniel Cerqueira mostra que menos armas, menos homicídios. Esse trabalho analisou o estado de São Paulo entre os anos de 2001 e 2007, período em que houve uma diminuição de 60,1% no número de homicídios, considerando os possíveis efeitos do Estatuto do Desarmamento (Lei no. 10.826, de 22 de dezembro de 2003) nessa redução.

Ainda de acordo com Cerqueira, nas localidades com maior crescimento da taxa de homicídios, é possível verificar também um aumento de armas de fogo, assim como, nos locais em que houve uma diminuição da taxa de homicídios, houve de igual maneira uma menor taxa de crescimento de armas. O autor verificou que um aumento de 1% na quantidade de armas nas cidades implica em um aumento de 2% no número de homicídios. Ele também conclui em seu estudo que uma maior disponibilidade de armas nas cidades não significa necessariamente uma diminuição nos crimes contra o patrimônio, ou seja, os dados por ele analisados não corroboram um dos argumentos mais utilizados pelos defensores do porte de arma pelos cidadãos: que os criminosos seriam dissuadidos de praticar crimes caso a vítima estivesse potencialmente armada.

É interessante mencionar que, também pela análise de Daniel Cerqueira, as taxas de homicídio, de tentativa de homicídio e de latrocínio tiveram uma queda consistente no período de 2001 a 2005 em São Paulo, entretanto, elas apresentaram comportamentos distintos nos dois anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento em relação aos dois anos subsequentes a sua sanção. No primeiro período, essas taxas diminuíram 15,0%, 4,1% e 8,4%, respectivamente, enquanto que, no segundo período, essas taxas diminuíram, respectivamente, 38,4%, 20,3% e 43,2%.

Além disso, o Mapa da Violência 2015 estima que o Estatuto do Desarmamento evitou um total de 160.036 homicídios por armas de fogo no período de 2004 a 2012 no Brasil. Ou seja, caso o estatuto não tivesse sido aprovado, o número de homicídios no país seria muito maior do que é hoje. Em sua primeira edição no ano de 2005, o relatório situava o Brasil na segunda posição dos países em taxa de mortalidade por armas de fogo. Assim, considerando que na edição de 2015 o país ocupa agora o décimo primeiro lugar dentre noventa países analisados, além do fato de que a taxa de óbitos por armas de fogo em 100 mil pessoas de 2002 é praticamente a mesma da de 2012, pode-se afirmar que as políticas de desarmamento tiveram importante papel na “estagnação do crescimento descontrolado da mortalidade por armas de fogo”.

O caso australiano é o exemplo mais bem sucedido de side-effect no controle de assassinatos em massa e controle de violência. Em 1996, um atirador matou 32 pessoas com uma arma semiautomática, semelhante à usada em Orlando (tipo fuzil AR15) no dia 12 de junho. Os parlamentares da Austrália rapidamente aprovaram uma lei que restringia o uso de armas e outras determinações para reduzir o número de armas em circulação. A lei foi defendida pelo primeiro ministro John Howard, que esteve no poder de 1996 a 2007, pelo Partido Liberal. De acordo com o estudo de Andrew Leigh e Christine Neill, na década após a lei ser aprovada, a taxa de homicídios caiu em 59%, os suicídios com arma de fogo caíram 65%, sem paralelo de aumento em homicídios e suicídios que não usassem armas.

O trabalho também estimou que a recompra de 3.500 armas por 100.000 pessoas resultou em um declínio de 35-50% na taxa de homicídios, mas, como o número de homicídios na Austrália é normalmente baixo, essa evidência não é considerada estatisticamente significante. O que é considerado estatisticamente significante por Leigh e Neill é o declínio no índice de suicídios, no qual estimaram uma redução de 74%.

A pesquisa encabeçada por Santaella-Tenorio et al analisou e revisou as evidências de 130 estudos, em 10 países, com o escopo temporal de 1950 a 2014. Os autores afirmam que os seus achados não provam, conclusivamente, que as restrições do porte de armas reduzem as mortes provocadas com o uso de armas de fogo. Contudo, eles ressaltam que novas restrições na aquisição de armas tendem a ser seguidas por uma redução no número de mortes. Nesse trabalho, desenvolvido por professores da Universidade de Columbia e da Carolina do Norte, foram analisadas mudanças na legislação em países do mundo desenvolvido, como Estados Unidos, Austrália e Áustria, assim como nos países em desenvolvimento, especificamente o caso brasileiro e sul-africano.

Os autores (idem) argumentam que a “violência por armas” declinou após os países implementarem, de forma simultânea, múltiplas restrições às armas, incluindo armas de assalto (tipo AR-15, AK-47), para a população. De forma geral, os países aprovaram leis que possuem algumas características comuns: 1) banimento de armas que sejam “muito poderosas”, como os rifles automáticos mencionados previamente; 2) todos implementaram a checagem de antecedentes criminais; 3) licenças e permissões passaram a ser necessárias para se possuir porte de armas. Aprovada no ano 2000, a lei “Firearm Control Act” da África do Sul continha todas essas medidas.

Santaella-Tenorio et al também observaram que as regras sobre estocagem de armas tiveram impacto positivo na redução de certos tipos de morte. Os autores identificaram que havia uma associação com taxas menores de homicídios entre parceiros e mortes não intencionais que envolviam crianças por causa das armas estocadas (idem). Eles também analisaram estudos que são pró-armas, como o de Gary Kleck (Florida´s State) e do pesquisador independente, e colunista da Fox News, John Lott. Estudiosos que reexaminaram as conclusões deles, algumas vezes usando o mesmo tipo de dados, geralmente atingiram resultados opostos ao que eles advogam em seus trabalhos.

De certa forma, os estudos não são conclusivos sobre algumas questões, mas trazem fortes evidências: reduzir o acesso às armas também reduz, de forma geral, os suicídios. Como este triste ato é dado de forma impulsiva, as armas são mais eficientes em finalizar a ação, enquanto as pílulas, não. Muitas vezes as pessoas se arrependem dos seus atos (quando tentam sem ser com o uso de armas) e mudam a postura em busca de tratamento. Os trabalhos que buscaram ser isentos, nem pró-armas nem contra elas, trouxeram dados variados que ajudaram a iluminar o debate sobre as restrições ao uso de armas. A maioria dos estudos não é conclusivo, devido as limitações de uma política pública como essa, mas, de forma geral, os trabalhos convergiram para a ideia que as mortes por arma de fogo diminuíram após a implementação de leis que restringiam o acesso a elas. Podemos afirmar que as evidências são sugestivas e o debate ainda está longe de acabar.

* Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor de Relações Internacionais da Faculdade Damas da Instrução Cristã. 

** Graduanda em Relações Internacionais pela Faculdade Damas da Instrução Cristã.

*** Graduando em Relações Internacionais pela Faculdade Damas da Instrução Cristã.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Congresso e Eleições: a incoerência partidária

Por Leon Victor de Queiroz*

(Publicado originalmente em 'O Estado de São Paulo', em 12 de Agosto) - Texto do Blog 'Movimento Consciente'

Os partidos políticos no Brasil não são verticalizados, o que significa que as alianças governativas, formadas no âmbito do Congresso Nacional, não necessariamente se reproduzirão nas eleições locais. Eleições sempre se dão em arenas diferentes. Partidos são instituições e, como todas elas, têm atores e cálculos estratégicos – sendo um dos principais objetivos a sobrevivência política. Todo partido político busca otimizar suas chances de manter-se relevante no jogo. Entretanto, se de um lado há um conjunto de cálculos estratégicos na busca da sobrevivência, do outro há a coerência dos discursos. Os mais radicais têm mais tendências a incorrer em incoerências e cair em contradição.

O PSOL, por exemplo, protagonizou em âmbito nacional uma brutal incoerência. O diretório do Rio de Janeiro permitiu que um militar, um dos líderes da “greve” dos bombeiros em 2011, se candidatasse a deputado federal. A estratégia eleitoral era a de aproveitar a notoriedade do bombeiro e revertê-la em votos, o que deu certo. Ele foi eleito com quase 50 mil votos (cerca de 0,65% dos votos válidos fluminenses). Para os dirigentes do partido, a militância no movimento grevista teria mais destaque do que o fato de o candidato ser religioso e militar (vale lembrar que boa parte do PSOL veio do PT, partido cujos principais expoentes lutaram contra o regime militar).

Na Câmara dos Deputados, o parlamentar passou a agir de acordo com os seus princípios e a sua consciência, o que é ruim para o sistema partidário, mas uma prática adotada por quase todos os legisladores. O militar psolista, por exemplo, propôs uma PEC para retirar a palavra “povo” do trecho do preâmbulo constitucional que estabelece que todo o poder emana do povo e substituí-la por Deus. Logo o alarme de incêndio do partido acendeu, gerando um movimento para expulsar o militar-religioso do seio do socialismo e da liberdade. Na executiva nacional do partido, ainda houve um membro que votou contra a expulsão, consumada por 53 votos. Porém, a executiva decidiu não pleitear o mandato, embora o parlamentar tenha infringido as diretrizes do partido.

O PSOL de Pernambuco, também por meio do cálculo da estratégia eleitoral, coligou-se em 2014 ao PMN, partido que nacionalmente estava coligado ao PSDB para a eleição presidencial. Durante a propaganda televisiva da chapa proporcional, o PMN inclusive usou o símbolo do PSDB em função da aliança nacional. O fato causou mal estar na militância. Porém, ao final, o PSOL conseguiu eleger seu principal líder, o primeiro deputado estadual do partido em Pernambuco que, nestas eleições, disputa a prefeitura do Recife e cuja estratégia é a de fortalecer a chapa proporcional e eleger pelo menos um (a) vereador (a).

O caso que talvez seja o mais incoerente é o do PC do B. Fiel aliado do PT e seu principal defensor histórico, os comunistas montaram alianças com partidos que votaram maciçamente a favor do impeachment, que eles chamam de golpe, para não correr o risco de perder espaço no poder. Ora, é perfeitamente inteligível que o PC do B busque um projeto próprio, independente do PT, e que forme alianças com outros partidos, mas fica difícil defender a tese do golpe se candidatando, justamente, de braços dados com aqueles vinculados aos partidos golpistas.

Estas incoerências, além das próprias inadequações dos nomes dos partidos, confundem o eleitor e minam a credibilidade dos discursos. Em breve, com as eleições municipais, o eleitor terá dificuldade em se identificar com os partidos quando colocadas essas questões mais institucionalizadas. O componente local irá se sobrepor à coerência discursiva e à própria atuação dos partidos no Congresso Nacional. Condorcet é que estava certo: quando há atores com preferências intransitivas (intransigentes), a saída é mudar de preferência para não impedir a decisão. Mas não precisa ser de forma tão incoerente assim.

* Doutor em Ciência Política (UFPE). Professor adjunto (UFCG).

Imagem: Reprodução http://www.portalconscienciapolitica.com.br/

segunda-feira, 11 de julho de 2016

O 9 de julho paulista e a federação

Por Raphael Machado*

Numa república simples, todo o poder entregue pelo povo é submetido à administração de um único governo, e as usurpações são prevenidas por uma divisão do governo em departamentos distintos e separados. […] o poder entregue pelo povo é primeiramente repartido por dois governos distintos, e, depois, a parte atribuída a cada um deles é por sua vez repartida entre departamentos distintos e separados. Surge deste modo uma dupla segurança para os direitos do povo. Os diferentes governos controlar-se-ão mutuamente ao mesmo tempo que cada um deles será controlado por si próprio.

James Madison – O Federalista No. 51, 6 de Fevereiro, 1788 

O processo de mobilização política em curso no Brasil a partir de 2013, trouxe à tona discursos e ideais já há muito solapados pelas lutas sociais. O ideal separatista paulista é um desses temas recuperados em momentos de agitação social e política. A imagem do estado de São Paulo como a locomotiva do país ainda paira como uma espécie de material ideológico bandeirante. A convocatória à causa paulista não é mais um apelo à mocidade de Piratininga, tal como estampado nos cartazes e jornais de 1932, mas manifestos e charges espalhadas pelas redes sociais exigindo o abandono dos 26 vagões federados vazios. 

Por sinal, o movimento iniciado em 9 de julho de 1932 se estabeleceu mais como uma revolta no intuito de restaurar o poder e prestígio de São Paulo, desgastado com o fim da República Velha (1889-1930), do que possuidos de um viés separatista. A perda do controle da política do café pelas oligarquias paulistas foi um duro golpe em seu poder econômico, tornando-se barganha na reestruturação das relações federativas de São Paulo com o governo central. A Revolução de 1930 representou um salto qualitativo na organização do Estado brasileiro, as elites regionais estabelecidas não se conformaram com a centralização do poder político, lançando a população paulista às armas. 

O movimento não durou muito, logo no dia 29 de setembro de 1932 foi assinado o Protocolo de Cruzeiro, em que as forças insurrecionárias se rendiam frente à Federação. Em 2 de outubro, o General Góis Monteiro, por meio de um comunicado difundido pelas ondas de rádio, dava como terminada a contenda com São Paulo. Na ocasião, o General afirmou: “Pode São Paulo estar certo de que o governo não o tratará em desigualdade e inferioridade em relação aos outros estados”. Os privilégios paulistas estavam garantidos, assim como um amplo processo de anistia aos revoltosos.

Os argumentos contemporâneos para a emancipação paulista são tão antigos quanto o ideário “revolucionário” de 1932. A suposta crença na proeminência do estado frente à Federação não passa de um eco do orgulho paulista. 

O estado é, atualmente, o maior devedor da União. Nas recentes rodadas de renegociação das dívidas estaduais São Paulo obteve um desconto de R$ 400 milhões, e mais prazo para o pagamento das parcelas. Mesmo com essas vantagens o Governador Geraldo Alckimin trouxe o discurso dos derrotados de 1932 de volta à cena: “não houve isonomia de tratamento entre os estados” . Isso porque o estado não conseguiu os mesmos descontos e prazos de outros estados que deviam menos. 

Tal como afirma Maria do Carmo Campello de Souza, “os interesses regionais, os atores políticos e as políticas públicas fundados regionalmente são contendores críticos na luta por alterações no sistema político”. A rejeição do regime de urgência para a votação da renegociação das dívidas estaduais na Câmara dos Deputados  é um ponto de atenção para o governo Temer e parece iniciar uma rodada de mudanças com a saída de Eduardo Cunha da Presidência da Casa. 

O velho lema em latim, estampado na bandeira da cidade de São Paulo, Non Ducor Duco (não sou conduzido, conduzo), soa como anacrônico frente ao cenário político-econômico atual. Os ideais separatistas de São Paulo não possuem substrato real, pois o estado não pode realizá-lo. A força centrípeta do Governo Federal atua de maneira inconteste sobre este ente federado. 

*  Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).

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Imagem: Reprodução/http://www.saopauloindependente.org/

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Para onde vamos?

Por Vitor Sandes* e Luiz Fernando Miranda**

Em 2013, ocorreram as “manifestações de Junho”, onde vários setores sociais saíram às ruas para protestar contra diversas questões. De um movimento organizado inicialmente pelo MPL (Movimento Passe Livre), que protestava contra o aumento das passagens de ônibus, o movimento se ampliou e agregou diversos setores da sociedade que reivindicavam diversas pautas: saúde, educação, ética na política, etc. No final, uma grande lição foi deixada: “não foi somente por 20 centavos”. O cerne do problema parecia ser o próprio sistema político. Ele estaria corroído por uma crise ética de seus representantes. Se tivéssemos que imaginar uma decisão que saiu das ruas, ela cobrava por mudanças. Mas, por onde começar?

Em um texto escrito pelo cientista político Fabiano Santos, ex-presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), em 30 de setembro de 2006, para a Folha de São Paulo, o autor argumenta que a afirmação de que “bastaria alterar as regras, em particular as que regem a competição eleitoral (...), o sistema passaria a produzir representantes éticos e de alto padrão moral” é bastante frágil. A mudança do sistema eleitoral, ou mesmo de regras eleitorais, não resolveria sozinha o problema. Para ele, “os países que conseguiram diminuir as taxas de corrupção foram aqueles que aperfeiçoaram as instituições de controle, como ouvidoria, Ministério Público e Tribunais de Contas”. Nesse sentido, conforme o argumento do autor, as alterações nas regras não seriam suficientes para modificar o comportamento dos políticos. Somente o reforço da accountability horizontal poderia gerar incentivos a ações mais republicanas.

Santos acertou neste sentido. Novos casos de corrupção na política têm surgido e novas operações foram deflagradas pela Polícia Federal (como a Lava Jato), os Tribunais de Contas têm fiscalizado de forma mais eficiente os gastos públicos, o Ministério Público tem atuado como importante órgão de combate à corrupção e o Judiciário (em particular, o STF) tem se tornado um ator político fundamental no acompanhamento e julgamento das ações dos outros poderes. Como resultado, os políticos são cada vez mais cobrados, fiscalizados, julgados e condenados do que anos atrás.

Algo importante a ser destacado no texto de Santos é o enfoque dado ao surgimento de corrupção nos países capitalistas. Se é verdade que a corrupção se encontra disseminada nos países onde o capitalismo se conjuga com a democracia, não podemos dizer que não há corrupção em países onde não há um sistema de transparência e integridade eficazes. Qual seria o tamanho da corrupção na China, na Rússia ou na Coréia do Norte? Simplesmente não sabemos. Não se pode afirmar o tamanho da corrupção em tais países.

Outro aspecto importante a se mencionar é que, pelo menos em teoria, países com punições desenhadas para se diminuir a corrupção são aqueles em que a corrupção é mais custosa, e, portanto, ela ocorre menos. Não é à toa que o Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional aponta como menos corruptos países que tem incentivos para serem menos corruptos em função de seus desenhos institucionais. Noruega, Dinamarca, Suécia, Cingapura e Nova Zelândia são países que sempre configuram como os menos corruptos.

Fica, então, uma pergunta por responder: por que políticos racionais, que desejam reeleição, se engajam em atividades ilícitas que podem por fim as suas carreiras? A resposta repousa na impunidade e nas regras institucionais que facilitam que a corrupção ocorra.

O mainstream da ciência política brasileira nos diz que o funcionamento das instituições políticas ocorre de maneira eficaz. Consideramos o argumento valido, necessário, mas insuficiente. Funciona bem, mas parcialmente. Se é verdade, que, em plena crise atual do impeachment, os três poderes federais (Executivo, Legislativo e Judiciário) têm efetivamente funcionado em algum grau, este não é o grau necessário para se ter eficiência. O argumento de que as instituições políticas brasileiras funcionam fica a despeito da devida atenção ao tema da qualidade da democracia.


Podemos, agora, voltar à pergunta inicial do artigo. Para onde vamos? O governo Temer tem se empenhado em reformas-chave para estabilização econômica, como a da previdência. O que podemos concluir é que as reformas econômicas também são necessárias, mas insuficientes, para manter o funcionamento do regime. É aí que o tema da reforma política surge, para que se evite um novo abalo, ou mesmo um colapso das instituições políticas. Mantidas as condições do sistema eleitoral, do sistema de financiamento de campanhas, do aumento da fragmentação partidária, da manutenção da atual lei de licitações e pouca transparência pública iremos apenas adiar uma nova crise. Se o governo Temer tem interesse ou mesmo fôlego para passar reformas que mexem com interesses dos políticos é o que o futuro irá nos dizer. O cenário é nebuloso e qualquer reflexão bem feita exige cautela.

* Doutor em Ciência Política (UNICAMP). Professor Adjunto (UFPI).
** Pós-Doc (PUC-Rio).

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Novas constituições e velhos problemas

Por Pedro Capra* e André Amud Botelho**

O Chile da presidenta socialista Michelle Bachelet anunciou na última sexta-feira, 29 de abril de 2015, que irá convocar uma constituinte para substituir a constituição atual, em vigência desde 1980, auge da ditadura militar de Augusto Pinochet. É verdade que essa foi uma promessa de campanha e em nada surpreende sua decisão. Entretanto, dos 10 países da América do Sul, apenas o Uruguai tem uma Constituição mais antiga, aprovada em 1967, antes do regime militar que controlou o país entre 1973 e 1985.[1]

Ao longo de seus processos de redemocratização, vimos novas constituições emergirem no Brasil, em 1988, Paraguai, em 1992, Argentina, em 1994 (revisão à constituição de 1853), Peru, em 1993, e Bolívia, em 1994 (constituição de 1967 com reformas), com o objetivo de substituir cartas ultrapassadas e com discutíveis valores cidadãos. Países que não viveram os anos da Operação Condor [2] e das ditaduras violentas, também introduziram novas constituições. É o caso de Colômbia, em 1991, e Venezuela, em 1999.  A pergunta que surge é: por que o Chile, último país da região a se redemocratizar, é também o último a enterrar a Constituição de seu período autoritário?[3]

Em dezembro de 2006, após a morte de Pinochet, o cientista político chileno Manuel Antonio Garretón dava algumas pistas ao afirmar que “um país que mantém como constituição um texto imposto por Pinochet não está reconciliado com seu passado” mas se enganava ao sugerir que “sem Pinochet, abre-se a oportunidade de romper a institucionalidade que foi inteiramente gerada na ditadura, partindo da Constituição. Com sua morte, desaparece o personagem simbólico que permitia que a institucionalidade mantivesse sua referência"[4]. Para tanto, seria necessário um profundo confronto com o passado, a desconstrução de símbolos e mitos que sobrevivem à morte dos atores da história, além do julgamento a respeito dos crimes cometidos pelo Estado.

Esse processo é importantíssimo para que o passado recente sul-americano siga em direção à tão propagada reconciliação. A Argentina deu passo importante nesse sentido, tendo criado a Comissão Nacional Sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) logo após a redemocratização (Governo Alfonsin, dezembro de 1983) e transformado o antigo centro de tortura, Escola de Mecânica da Armada (ESMA), em um marcante espaço de memória e direitos humanos.[5] O Brasil, ainda tímido, busca através de sua Comissão da Verdade [6] informações necessárias para os processos de reconciliação e transição democrática. Desde 2001, o Brasil conta com a estrutura e os trabalhos da Comissão de Anistia Política que aprovou mais de 40 mil processos de reparação a perseguidos pela ditadura civil-militar brasileira.

O Chile apenas fingiu iniciar um processo de esclarecimento dos crimes de sua ditadura, ainda em 1991, com o ainda poderoso senador vitalício, Augusto Pinochet, e seus aliados observando tudo. Segundo Bachelet, é importante um processo constituinte aberto à cidadania e que resulte numa "carta fundamental, plenamente democrática e cidadã"[7]. De fato, essa foi a principal característica das constituições aprovadas na região ao longo das três últimas décadas com o destaque a mecanismos participativos como referendos e iniciativas populares. Para um processo completo, é importante buscar a verdade além de criar instituições cidadãs que forjem e garantam o espaço público democrático. Que esse processo constituinte siga nessa direção.

Pesquisador visitante - Universität Zürich. Doutorando em Ciência Política - UNICAMP. 
** Antropólogo do Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM. Mestre em Antropologia - UFF.

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[1] Um interessante detalhe: uma Constituição apresentada pelos militares uruguaios num referendo popular foi rejeitada em novembro de 1980.
[2] A Operação Condor foi uma associação constituída na década de 1970 que permitiu a repressão aos opositores dos regimes militares vigentes além de fronteiras nacionais. Sua existência foi confirmada com a descoberta, em 1992, do Archivo del Horror, no Paraguai. O filme de Roberto Mader, Condor, de 2007, retrata bem os meandros da operação.
[3] Essa não é uma data qualquer. O golpe militar dado pelo Gal Pinochet aconteceu em 11 de setembro de 1973, assim como o assassinato do presidente democraticamente eleito, o socialista Salvador Allende.
[6] A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei n. 12.528/2011. Seus trabalhos iniciaram-se em maio de 2012.